Há um real em jogo na
própria formação do
analista” (Lacan)
A formação do analista é uma formação continuada e ininterrupta . O que é formação continuada? Quando falamos de formação continuada em Psicanálise, estamos fazendo referência aos três eixos estabelecidos por Freud e retificados por Lacan: análise pessoal, supervisão (análise de controle) e formação teórica contínua. Esses três eixos explicitam a especificidade da formação do psicanalista, que se diferencia das formações do psicólogo ou do psiquiatra, por exemplo.
1 – ANÁLISE PESSOAL
Um dos três eixos que marca tal diferença é a exigência da análise pessoal. A análise pessoal é a primeira grande tarefa de um analista em formação por exigir que se inicie sua prática clínica pela investigação da sua própria subjetividade. Um analista, antes de vir a oferecer sua escuta a alguém, deve se comprometer a escutar seu próprio inconsciente; ou seja, deve analisar suas fantasias enrijecidas, seus sintomas, suas construções imaginárias (como preconceitos de todas as ordens, até então, muitas vezes, desconhecidos pela consciência), dentre outros recalques que podem comprometer a escuta do futuro analista. A capacidade de escuta do analista advirá, portanto, de seu desejo, primeiro de se escutar em sua análise pessoal, para, só depois, conseguir oferecer sua escuta flutuante. Esse é o principal impedimento para que a psicanálise possa vir a se tornar um curso de graduação e oferecer uma formação de ensino universitário. Não haveria como propor uma ementa ou carga horária pré-estipulada para uma análise pessoal.
2 – SUPERVISÃO CLÍNICA OU ANÁLISE DE CONTROLE
O segundo eixo do tripé da formação continuada é a supervisão clínica, nomeada também como análise de controle. E o que se controla? Na prática a palavra “controle” foge parcialmente do seu sentido no dicionário. A análise de controle não está relacionada à ideia de “domínio, vigilância, fiscalização, inspeção ou comprovação”, mas de um “exame minucioso” (Dicionário Priberam). Eis o sentido da análise de controle ou da supervisão clínica. Trata-se de, junto com um terceiro mais experiente , fazer um exame minucioso do seu trabalho como analista. Investigar o que ele escutou sob transferência e quais as construções, pontuações, interpretações, cortes e demais produções feitas. Neste trabalho de supervisão, o supervisionando endereça a um terceiro o lugar de supervisor (controlador) por supor que este analista/supervisor pode ser capaz de encontrar lacunas ou auxiliá-lo na formalização das construções e acontecimentos de uma análise. Ao aceitar o convite, o supervisor e o supervisionando estabelecem um laço social e ético de modo a fazer uma releitura conjunta do texto, não só de um analisando específico, mas, sobretudo, das leituras feitas pelo analista supervisionando .
O que faz laço social entre dois analistas, controlador e controlado, é sua posição de leitores que leem lado a lado o mesmo livro, decifrando a mesma linguagem cifrada que é o inconsciente, tendo em vista um ganho a obter de um mesmo saber textual. Inicialmente, não há leitura e depois, troca de saber , mas essa troca é sua própria leitura”. (Hoffman et al., 1996, p. 56)
Assim, embora saibamos que a condição primeira para se tornar um psicanalista é a análise pessoal, percebemos que tanto algumas construções feitas na análise pessoal, quanto as realizadas do lugar de analista, vão encontrar, na análise de controle, um outro lugar, um terceiro lugar que produzirá ressonâncias para que o supervisionando possa escutar os efeitos do seu trabalho como analista. Trata-se de um terceiro lugar ético da formação, lugar em que cada um examina minuciosamente a própria formação e as condições de se autorizar a ocupar o lugar de analista, sem perder de vista que quem autoriza não é o analista de controle, pois, como afirma Lacan na Proposição de 09 de outubro de 1967, “o psicanalista só se autoriza por si mesmo”.
3 -FORMAÇÃO TEÓRICA
A formação teórica, terceiro eixo da formação do analista, é tão importante quanto os outros dois apresentados acima. Trata-se da travessia teórica da psicanálise. No tripé da formação, percebemos que a análise pessoal e a análise de controle são as duas pernas da formação mais atravessadas pelo real, pelo potencial que tem para escapulir e surpreender o tempo todo. A formação teórica é, acima de tudo, uma tentativa de simbolizar o real.
Ao longo da formação do analista, podemos debater longamente sobre o final da análise, desde Freud, com seu artigo “Análise Terminável ou Interminável”, de 1937, até Lacan, com seu dispositivo do Passe. Não há um consenso entre as instituições de psicanálise sobre o final da análise, mas temos um entendimento concordante sobre a formação teórica. A travessia psicanalítica, enquanto travessia teórica, não tem fim. Trata-se de um trabalho interminável em que quanto mais se estuda, mais se percebe que pouco se sabe e que há muito ainda para se saber. O analista é, portanto, aquele que escolhe ter a vida dedicada à sua formação em psicanálise, que jamais se encerra diante de um saber não-todo.
Também por esta característica interminável é que a psicanálise se torna impossível nas universidades como curso formal de graduação. E é, justamente por isso, que Lacan (1969) afirma que: “a psicanálise não se transmite como qualquer outro saber”. A transmissão da psicanálise depende não só que o analista construa um enlace entre teoria, análise pessoal e análise de controle, como que ele seja capaz de transmitir tal construção. Um analista não pode ser somente aquele que recebe um ensino, mas, sobretudo, aquele capaz de também transmiti-lo. Por isso, Lacan afirma que a análise é intransmissível e, concomitantemente, solicita que não o imitem. Em resumo, a formação em análise é, sobretudo, uma invenção em análise.